quarta-feira, 21 de março de 2007

O difícil desafio de enxergar além do umbigo

Diz a lenda que os membros de uma fatídica comunidade viviam todos acorrentados numa caverna. E, por estarem de costas para a entrada, a única referência de mundo que possuíam eram as sombras das coisas reais que eram projetadas no fundo da caverna. Para eles, portanto, essas sombras eram o mundo real.

Num belo dia, num passe de mágica, um deles se liberta das correntes, caminha até a entrada da caverna, e o contato com o exterior da caverna lhe revela o verdadeiro mundo real. Após um momento de cegueira, ele digere a descoberta e corre para dividi-la com seus companheiros. Mas eles não lhe dão ouvidos: ao invés disso, se negam a abandonar uma perspectiva que já estava arraigada e era confortável. Não aceitam experimentar um outro olhar, e aniquilam o “desviante” que ousava enxergar diferente.

A “alegoria da caverna”, presença clássica em qualquer início de curso de Filosofia, mostra que o homem se satisfaz rapidamente com as crenças e visões de mundo que acumula e, mais do que isso, resiste o quanto pode à idéia de revê-las. E que qualquer iniciativa que sugira uma ruptura ou coloque em xeque os valores dominantes tende a ser considerada desagradável e até mesmo ameaçadora.

Não faltam exemplos de como o homem realmente tem dificuldade de se desarmar e aceitar os valores do outro. Durante o processo de colonização do que viria a ser o Brasil, os europeus se recusaram a aceitar que os índios também eram seres humanos e possuíam uma cultura e valores que deveriam ser respeitados. Em vez disso, os invasores impuseram seus próprios valores como os únicos aceitáveis, destruindo tudo aquilo que fosse diferente – em uma postura claramente etnocentrista, cujo resultado é conhecido por todos.

Um olhar cuidadoso, no entanto, permite ver que o apego do homem aos seus pontos de vista vai mais além do que se pode imaginar. Até mesmo o seu jeito de encarar a História acaba sendo afetado. Ao interpretar o passado, ele é incapaz de se despir de seus valores do presente; dessa forma, o resultado é uma visão profundamente contaminada por julgamentos, que acabam distorcendo a própria História.

Não é possível compreender completamente a colonização americana ou mesmo a ascensão de Hitler quando se usa na análise um prisma de valores que não seja o da própria época dos fatos. Mas o homem se propõe a reescrever a História passada por olhos atuais – cedendo à tentação do maniqueísmo, que santifica algumas personagens e demoniza outras. Essa postura, que os historiadores denominam anacronismo, vem justamente da tal incapacidade humana de, por alguns momentos, se desvencilhar dos próprios valores e tentar aceitar um olhar diferente.

Assim, quem se puser a refletir vai perceber que o homem continua preferindo enxergar as sombras no fundo da caverna. E provavelmente será sempre assim: é mais cômodo e menos ameaçador apegar-se à própria visão das coisas do que arriscar-se a vê-la destruída em nome do novo – ainda que o novo seja a descoberta de que a realidade, na verdade, é outra. Aventurar-se a vencer esse obstáculo, desvendar mitos e passar a pensar diferente é justamente o convite que nos faz essa ciência chamada Filosofia.

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